quinta-feira, 3 de novembro de 2011

I. Série sabedoria popular: “formiga quando quer se perder cria asas”

Naquele tempo era natural que se fizesse uso da sabedoria popular em orientações educacionais; hoje até diria: para fins terapêuticos em detrimento do teor pedagógico limitado. Naturalíssimo era a gente daquela geração ouvir entre uma conversa, conselho, advertência ou mesmo surra uma citação tão valiosa como se tivesse sido extraída de livros acadêmicos. Possivelmente uam maneira terna de substituir a ausência também natural de uma formação de ensino.

O fato é que desde tenra idade ouvi uma ou outra frase de efeito daquele adágio popular. Frase feita que misteriosamente encaixava-se no expediente certo, quantas fossem as situações e os tempos. E lá explodia a mesmíssima frase que nunca perdia seu valor, impressão de eternidade. Tenho uma coleção mental delas - as mais recorrentes e, sobretudo, as que são mais inerentes ao meu processo pessoal de análise... 

Hoje desejo comentar uma que, motivada pelo resgate de cena, é repleta de conteúdo psicanalítico. Nessa época do ano podemos presenciar na coincidência das chuvas (aqui chamadas de chuvas dos cajus e das mangas) o balé aéreo do acasalamento das formigas. Pela revelação da metamorfose elas “criam asas” e no rito mais importante de suas vidas, Elas, as rainhas em pleno vôo são fecundadas pelos machos mais rápidos para em seguida descerem a terra, como anjos caídos, quando arrancarão suas asas irão formar novos formigueiros. Soube que os machos morrem em seguida, pois seus órgãos reprodutores ficam presos às fêmeas durante a “dança”. Aliás, isso é constante no reino dos insetos...

E hoje, ao chegar pela calçada da Fundação em que dou expediente diário, uma revoada de formigas “exibicionistas” exploravam sua libido como se fosse a primeira e última vez, e literalmente o era. De imediato veio a imagem de alguém que suponho ter sido minha mãe dizendo não sei em qual ocasião e quem a bendita frase: “formiga quando quer se perder cria asas”.

Alguém aí já passou pelo questionamento interior de quando algumas cenas infnatis são bobamente inesquecíveis especialmente para nós? Curioso como alguns conteúdos nossos ficam registrados e mesmo embaçados em amnésia infantil se mostram salientes e se fazem lembrar. E, se se fazem lembrar é porque estão relacionados às nossas faltas, ao nosso incessante desejo. Pois bem, tenho uma coleção de ditos populares que tentarei eventualmente pela psicanálise abordar.

Hoje medito sobre o simbólico da asa libertadora do animal que preso ao chão, um dia de sua existência terrena se transformará e terá a possbilidade de voar e por um altíssimo preço cumprir sua saga. Reflito principalmente sobre o contexto sexual presente ali no ato, até mesmo transferido a questão ao sexo católico de função unicamente procriadora e polêmica.

No Brasil interiorano ainda é muito freqüente a atribuição pecaminosa do verbo “perder-se”. A entrega do corpo a alguém ou a alguns que seja não pela via socialmente aceita abre um sério precedente. Indigno, maculado, sujo. E sendo mulher então? Aliás, sempre pesa sobre elas a bigorna das convenções quando lhes são impostas as mesmíssimas condições das antepassadas. O "vôo" tem que ser realmente nupcial como a biologia tratou de nomear para o caso das formigas e tanajuras? Pensemos na semelhança: elas que arrancam as asas para procriar e se limitarem sexualmente. Absurdo pensar que ainda hoje existam tais situações onde a mulher não seja mais sexualmente ativa após assumirem a condição maternal e a posição de rainhas... do lar. Títulos honoríficos e anulação do prazer. Tantos casais apáticos que não enxergam mais a vitalidade da pulsão sexual e viram, por meio de uma estranha metamorfose, sócios de um empreendimento puramente comercial chamado família com suas preocupações exclusivamente materialistas e o medo constante da falência.

"Formiga quando quer se perder cria asas" traz a possibilidade do vôo, de reparar as coisas de cima, de tocar o ar quando ele é mais ar, mais céu, mais amplo, coincidentemente chuvoso, em meio a neblina, a incerteza do futuro. É a grande massa de asas ofuscando e revelando descaradamente o que muitas vezes é reprimido uma vida inteira. Mas, sem zumbido como as vizinhas abelhas. São formigas e exatamente em vôo silencioso de uma ousadia sem precedentes e que jamais se repita novamente. É estonteante notar e pressentir o gozo que as minúsculas mas em grande volume tencionam nos revelar, nem que para isso uma mais histérica queira nos "falar ao pé do ouvido" do reprimido bem de perto, voando e penetrando em nosso ouvido. Medo de formiga de asas entrar no ouvido e quando crianças nossas mães nos davam algodões para vedá-los. E ser capaz hoje o adulto de ouvir o que antes era prematuro, ser ele capaz de introjetar essa idéia de permissão para voar ao menos uma vez na vida. Como se achar sem nunca se perder? É o que Clarice Lispector sintetiza:


E no arremate eu convido Freud para nos explicar:

"Se quiseres poder suportar a vida,
fica pronto para aceitar a morte."
Sigmund Freud
possivelmente observando o vôo nupcial das formigas
(risos)