quinta-feira, 26 de julho de 2012

O psicossomático e o psicanalítico




















Revendo algumas marcações teóricas que se debruçam sobre os fenômenos psicossomáticos, cuidei em elaborar a presente pontuação para refletirmos algumas questões entre os colegas do ofício psicanalítico e os leitores afins do nosso blog.

Desde 2009 tenho gradativamente aprofundado parte das minhas leituras destinadas ao tema e muito embora tenha sido ela, a psicossomática, gestada no seio da medicina, sou grato aos filósofos da psicanálise que contribuíram para o seu desprendimento do saber puramente biomédico.

A discussão pode inclusive e naturalmente partir da Mãe Filosofia ao resgatarmos, por exemplo, o pensamento cartesiano e aquilo que ele sustenta sobre o dualismo corpo e mente, em separado.

Mas será que ao falarmos em psicossomática, devemos atender a um chamado de mão dupla e fazermos uma leitura divorciada do seu aspecto físico e do psíquico? Antes de mais nada, de onde vem o entendimento da doença psicossomática?

Para a história dos fatos, o termo aparece pela primeira vez em 1818 quando o médico Johann Heinroth apresentava trabalhos sobre o fervor e influência das paixões em algumas importantes doenças como a tuberculose, a epilepsia, e até mesmo o câncer.

Bom, anos e anos se passaram e por aqui bem perto muitos entoam uma fala que diz que doença psicossomática é um problema de fundo emocional. Pausa dramática. Doença de fundo emocional? É um pensar disperso e sem comprometimento, além de arriscado atribuir apenas ao listado plano das emoções a tradução de um sintoma inscrito no corpo e cuja presença segue mais além, no oceano das representações psíquicas.

Quando Freud tratou dos casos de histeria – e que isto também seja lido com bastante respeito teórico – mesmo não abordando frontalmente o viés psicossomático, o pai da psicanálise permitiu uma perfeita articulação que será, décadas mais tarde, tra(du)zida por Jacques Lacan e não só por este, como veremos mais adiante.


MEDICALIZAÇÃO: Freud em 1930  já previa o exagerado
mercado/consumo de drogas medicamentosas que apenas 
vão sedando e bão resolvem o sofrimento do sujeito humano. 
Antes do pensamento lacaniano que é de fundo lingüístico, portanto, inerente aos fenômenos da linguagem humana, precisamos reafirmar a compreensão de que na histeria, a famigerada conversão histérica não deve ser entendida como um sintoma psicossomático pela simples razão de que lá, sua incidência se dá no traço da subjetividade, das representações, ou ainda como o próprio Lacan diria: em seus significantes. Já na acepção psicossomática, sua incidência ocorre na exatidão física do corpo, a parte concreta. A exemplo disto, podemos relembrar os casos de ontem e de hoje que envolvem cegueira repentina quando nada de orgânico acomete o olho e sim a representação que esse olho conclama, a do não “enxergar a realidade” por assim pontuar.


Assim, o sintoma somático se constitui, creditando, vertendo-se na existência de uma afecção fisiológica. Ora, se o SOMA representa o corpo, e na própria etimologia da palavra psicossomática podemos traduzir o elo inquebrável entre o psíquico (mente) e o somático (corpo), toda doença independentemente de sua etiologia, seria naturalmente recebida como uma doença psicossomática, sem cisões e sem esta categorização e rótulo específicos.


A prática clínica convida o analista a sempre rever
suas posições teóricas, interrogando-o, interpelando-o.
Natural em se tratando do universo da subjetividade 

Pensando nisso tudo e revisitando os teóricos da psicanálise que abordam os tais fenômenos psicossomáticos e dentre eles é indispensável convidar além de Jacques Lacan, Donald Winnicott. O primeiro, como já dissemos, buscará a partir da base freudiana a montagem de suas clínicas e, sobre psicossomática, trará poucas, porém imprescindíveis leituras a respeito de um necessário esclarecimento. Nas formações de psicanálise, por exemplo, pouco se ouve dizer da abordagem lacaniana para a psicossomática e sendo raras, precisam ser postas à mesa do debate.


Sobre isto, sobre psicossomática, Lacan irá cinco anos antes de morrer, conferir uma importante interpretação do fenômeno em sua comparação ao hieróglifo da escrita ideográfica egípcia. Em sendo assim, a somatização resultaria de um complexo processo de codificação do corpo, fruto de uma experiência malograda. Eis a marca, o registro, a fixação nos escritos de Freud.

Na cadeia interminável de significantes, Lacan demonstra de que maneira nosso condicionamento se sujeita ao corpo e àquilo que ele pedirá e negando, oferecerá em resposta.

Suscetivelmente desejantes nós permanecemos e no caso dos pacientes somatizantes, até que se engendre a possibilidade de dar um sentido, de providenciar uma linguagem para decodificar esse hieróglifo “perdido” ressignificando a cadeia de significantes, exercitando-a.

Uma contrapartida otimista vem pela contribuição do pediatra e grande teórico da psicanálise Donald Winnicott, que desde a clínica infantil observou a capacidade que eles tinham em transpor ao corpo, os conflitos vivenciados por esses bebês em um ambiente desfavorável à elaboração psíquica.

Winnicott nos sinaliza para a importância do transtorno como via esperançosa de que o corpo dispõe, apesar de tudo. Esta percepção será abraçada por muitos outros psicanalistas que em seus trabalhos clínicos ou teóricos lançarão mão do instigador argumento da “doença” que deixa de ser doença para assumir-se símbolo interpretável de uma (r)evolução natural e de seus mecanismos essenciais de resolução encontráveis no corpo, para o corpo.

Corpo embebido de experiência e afetos na percepção da psicanalista Joyce McDougall, onde a observação, também na clínica infantil, a fez salientar a importância de um ambiente favorável à vinculação.

Já o psicanalista e teórico Pierre Marty, um dos maiores estudiosos sobre o assunto na França, defende que há uma estruturação que difere a psicossomática das demais já preestabelecidas, como no caso da neurose, da psicose ou da perversão. Ele nos afirma que a tal doença psicossomática é uma defesa estratégica que determinados sujeitos encontram para dar vazão àquilo que Freud já alertava no estudo da pulsão sexual, ou seja, se por alguma razão nossa libido está impedida, é no corpo que ela encontrará a válvula de descarregamento. Os somatizantes, segundo Marty, se classificariam em uma outra categoria, diferente das já mencionadas acima.

Mas o pensamento não foge à idéia de unificação. Em suma, penso na via de realização de uma doença, como sendo todas elas inegavelmente psicossomáticas. Elas não passam despercebidas pelo trajeto da experiência humana, do contato, da (con)vivência ou da falta, que é a expressão mais idônea que nos acena o corpo e a mente, estas duas faces de uma mesma moeda de troca.     

O Gaulês moribundo (Século III a.C.)


A ciência moderna ainda não produziu
um medicamento tranquilizador tão eficaz
como o são umas poucas palavras boas

S. Freud