sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Filme INQUIETOS

Existe um pássaro que acha que morre sempre que o sol se põe.
De manhã, ao acordar, ele fica chocado de ainda estar vivo, então, canta uma canção linda.
Eu canto toda manhã desde que te conheci.
Annabel para Enoch

O que doze pessoas procuram numa sala de cinema em plena segunda-feira de carnaval? O que elas procuram eu não saberei dizer em uma única sessão, mas o que elas procuraram e encontraram foi o título sugestivo, palavra-chave: Inquietos, a recente produção de Gus Van Sant.
Na história, somos apresentados aos jovens Enoch e Annabel.
Ele carrega em si o trauma da perda dos pais em um acidente de carro em que segundo conta, permaneceu três meses em coma e viu o que a morte reserva do lado de lá. Mora com uma tia que lhe amparou desde então e tem um amigo fantasma, imaginário ou não porque o filme preserva a sutileza do mistério.
Ela, uma garota estudiosa e fã de Darwin, das leis biológicas, de aves e de insetos. Com câncer, ela percorrerá seus últimos meses de vida entre sensações, percepções e vivências extraordinárias.

Em comum, ambos freqüentam aleatoriamente velórios e memoriais de pessoas desconhecida até o dia em que se encontram e se permitem em trocas reais e simbólicas de afetos.

Quase sonho. É onírico quando o inconsciente parece se reproduzir inteiramente do lado de cá, pela via da amizade fantasma de Enoch com o kamikaze, pelas fantasias da festa de halloween, pelas cores, texturas, ângulos e dispersões.
 
Traz a perfeita dosagem entre o humor leve e o drama tocante, a ingenuidade e ao mesmo tempo a ousadia do adolescente enlutado pela criança que foi um dia, do medo de existir e de viver mais pungente que o medo da morte e do morrer, e tantas outras belas alternâncias das instâncias do sentir humano, tão bem justificadas no título do filme: INQUIETOS
É metalingüístico quando Annabel ensaia sua própria cena de morte em riqueza de falas e de detalhes. É poético na abertura musical com “two of us” dos Beatles, no desfecho com a linda The fairest of the seasons” e tocante no soar das melodias instrumentais diluídas durante o filme.
É “tanático” todo ele quando aborda de maneira cativante os assuntos inerentes às perdas, à morte, ao luto e de como, na grande maioria das vezes, nos abstemos de vivenciar a maior e mais lúcida de todas as nossas certezas e do valor que devemos dar a vida enquanto ela se fizer biologicamente presente. Da vida e da morte, tão reconhecíveis faces de uma mesma moeda.

Você pode fazer muitas coisas em três meses
Enoch para Annabel

Não sei bem a impressão dos demais expectadores do filme naquela segunda-feira de carnaval. O silêncio na descida dos degraus foi unânime e perturbador. Por um instante, pairou reconhecido em cada um, na penumbra daquela grande sala-caixa-útero de concreto, carpete e frio ar-condicionado o desejo perene do eterno retorno para "casa" como nos versos da beatle canção:

We're on our way home
We're going home
Nós estamos em nosso caminho para casa
Nós estamos indo para casa


Para ouvir enquanto lê: