segunda-feira, 23 de abril de 2012

FILME: A pele que habito


no divã de Almodóvar















Consegui, enfim, assistir ao filme de Pedro Almodóvar. Havia optado por outro filme quando de sua estréia há alguns meses. Entre os que amaram e os que odiaram, me coloco na fala dos que amaram. O filme conserva perfeitamente a assinatura do seu mestre Almodóvar e traz consigo inúmeras referências psicanalíticas.

A metáfora da pele é o pano de fundo essencial aos debates sobre nossa sexualidade, a que vestimos, a que habitamos, ou que alguns sujeitos humanos são forçados a habitar. O filme aborda em sua trama com grande particularidade essa questão da constituição da identidade. Pode parecer uma grande fábula, mas a metamorfose ali encerra uma grande discussão psíquica. Oscilando entre o fetiche, a castração e a peversão propriamente dita, refletimos pasmados sobre as peles em que habitamos ou nos aprisionamos.

A seguir, transponho um texto analítico do psicanalista Calligaris sobre o filme. Boa leitura.


A pele que habito (e a dos outros)

Por Contardo Calligaris

Há homens que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas

Nesta altura, considero conhecida a trama do último Almodóvar, "A Pele que Habito": um cirurgião, o doutor Ledgard, sequestra um jovem (Vicente) durante anos e o transforma numa mulher (Vera).
Na saída do cinema, alguém comenta: "Se acontecesse comigo, eu ficaria namorando o médico. Fazer o quê? Pênis, eu já não teria mais. E não estaria a fim de fugir. Voltar para minha vida de antes e contar que me tornei mulher para minha mãe e para meus amigos, já pensou?".
Infelizmente, na situação da vítima de Ledgard, ninguém conseguiria fazer prova de tamanho pragmatismo, por uma razão simples: a sensação íntima e profunda de ser homem ou mulher (a identidade de gênero) não é coisa que possa ser mudada.
É possível, isso sim (e acontece no caso dos transexuais), "retificar" o corpo, caso ele não coincida com a identidade de gênero de alguém.
Se você sempre se sentiu homem num corpo de mulher ou mulher num corpo de homem, se você tem a trágica impressão de estar no corpo errado, pois bem, nesse caso, à força de hormônios, operações cirúrgicas e orientações terapêuticas, você talvez possa modificar seu corpo de maneira que ele concorde com seu sentimento de identidade.
Mas não há tratamentos que, ao transformar seu corpo, possam levar você a mudar seu sentimento profundo de ser homem ou mulher.
Conclusão, se um homem fosse transformado em mulher à força, ele não se resignaria (pragmaticamente), mas passaria a vida querendo que seu corpo fosse retificado para ele voltar a ser o homem que ele nunca deixou de ser.
Em 24 de fevereiro de 2000, nesta coluna ("A terapia da faca e do superbonder"), contei a história de David Reimer, cujo pênis foi decepado acidentalmente na circuncisão, em 1966.

Por sugestão do psicólogo John Money, Reimer foi castrado e criado como menina, com a ideia de que é melhor ser uma menina fabricada (na faca, com hormônios, roupas e brincadeiras adequadas) do que um menino com uma prótese peniana.
John Money escondeu o desespero de Reimer durante infância e adolescência. Reimer, ao descobrir o engodo do qual tinha sido vítima, parou a palhaçada e voltou a ser homem. Atualizando: em 2004, Reimer se suicidou.
Por qual loucura Money imaginou que, ao transformar o corpo de um menino, ele poderia mudar sua identidade e fazer dele uma mulher?
A resposta está na onipotência das ciências humanas nos anos 60, mas também numa fantasia erótica masculina, que talvez Money compartilhasse e que paira tanto sobre "A Pele que Habito" quanto sobre o livro (imperdível) que inspira o filme: "Tarântula", de Thierry Jonquet (Record).
Há sites (sixpacksite.com; tgcomics.com; fictionmania.tv) inteiramente dedicados a ficções e quadrinhos que elaboram fantasias de feminização forçada. A clientela desses sites é de homens heterossexuais, que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas. Dica: os machos que se gabam por levar as mulheres à loucura podem estar com vontade de sentir neles mesmos o efeito de seus próprios (supostos) talentos.
Mais perto do cotidiano, "A Pele que Habito" é também apenas mais uma parábola do amor, pois é banal que o amor nos leve a querer transformar parceiros e parceiras de forma que eles correspondam a nossas expectativas.
O projeto de moldar o outro transforma qualquer convívio numa violência. Mas essa violência não impede nada: no clássico "Post-traumatic Therapy and Victims of Violence" (terapia pós-traumática e vítimas da violência, Routledge, 1988), Frank Ochberg enumerava, entre os sintomas habituais das vítimas, tanto um ódio ressentido e doentio quanto sentimentos positivos -incluindo amor romântico, sujeição e, paradoxalmente, gratidão.
"A Pele que Habito" poderia ser, em suma, a versão trágica e realista de "My Fair Lady". No musical, Eliza Doolittle acaba amando mais que odiando o prof. Higgins, que a transformou numa "lady". No filme de Almodóvar, talvez Vera odeie Ledgard mais do que o ama. Mas o que importa é que os sentimentos da vítima são sempre ambivalentes.
É essa a chave para entender as mil histórias de vítimas que poderiam ou deveriam ter fugido, como a de Natascha Kampusch, abusada por "3096 Dias" (Verus ed.), ou como a da menina que foi escrava sexual de Gaddafi durante cinco anos (Folha.com de 15/11; http://migre.me/6g0HI).

Folha de S.Paulo - Ilustrada - A pele que habito (e a dos outros) - 01/12/2011

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Maria Bethânia

"Escrever é purificador (...)
A brincadeira de ‘Carta de Amor’ é para mim,
para me livrar de demônios, angústias"

Maria Bethânia







Este mês de abril Bethânia lançou o álbum "Oásis de Bethânia" o de número 50 e durante uma coletiva aos jornalista no Rio de Janeiro, conversou sobre o novo projeto que tem inspirações sertanejas e poéticas, como sempre e disse lucidamente aos presentes:

"Sertão é onde não tem nada. Não tem água, falta tudo, a vida é seca.
É o limite que Deus colocou. Para mim isso é uma fonte,
uma nascente muito pura, me bota do tamanho que sou"

capa do cd

Ainda não adquiri o meu mas andei lendo e ouvindo do poema-canção "Carta de Amor" que ao que consta, pela primeira vez nos 47 anos de carreira, se apresenta como de sua autoria pessoal. Isto é muito significativo e revela uma maturidade "divanesca" (diva + divã).  Nos próximos dias, também editarei esta postagem para mencioná-lo integralmente. Mas de antemão e para quem ainda não conheceu, posso mencionar que é memorial. 


Um passeio simbólico por tudo quanto ela andou fazendo durante todos esses anos em seu divino ofício, das crenças, das heranças indígenas, africanas, portuguesas: brasileiras! De quando conheceu o Menino Jesus com o mestre Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, das contemplações à mãe natureza, das imensidões do universo à pequenez grão, farelo do sentimento humano. Mantra, desabafo, sussurro, muxoxo, praguejo poético de constranger e arrebatar, eis o texto:


Carta de Amor  Maria Bethânia

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe não


Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos Tupis
sou Tupinambá, tenho Erês, caboclo boiadeiro
mãos de cura, Morubichabas, Cocares, Arco-íris
Zarabatanas, Curarês, Flechas e Altares.
A velocidade da luz no escuro da mata escura
o breu o silêncio a espera. Eu tenho Jesus,
Maria e José, todos os Pajés em minha companhia
o menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos
(o poeta me contou).

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe não


Não misturo , não me dobro a rainha do mar
anda de mãos dadas comigo, me ensina o baile
das ondas e canta, canta, canta pra mim, é do
ouro de Oxum que é feita a armadura guarda o
meu corpo, garante meu sangue, minha garganta
o veneno do mal não acha passagem e em meu
coração Maria ascende sua luz, e me aponta o caminho.
Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã,
giro o mundo, viro, reviro tô no recôncavo
tô em face, vôo entre as estrelas, brinco de
ser uma traço o cruzeiro do sul, com a tocha
da fogueira de João menino, rezo com as três
Marias, vou além me recolho no esplendor das
nebulosas descanso nos vales, montanhas, durmo
na forja de algum, mergulho no calor da lava
dos vulcões, corpo vivo de Xangô

Não ando no Breu nem ando na treva
Não ando no breu nem ando na treva
é por onde eu vou o Santo me leva
é por onde eu vou o Santo me leva


Medo não me alcança, no deserto me acho, faço
cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo
meus pés recebem bálsamos, unguento suave das
mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro,
no Oásis de Bethânia.
Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
comece nem termine, é nunca é sempre, é tempo
de reparar na balança de nobre cobre que o rei
equilibra, fulmina o injusto, deixa nua a justiça

Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão
e pra onde você for não leva o meu nome não
e pra onde você for não leva o meu nome não
 

Onde vai valente? você secou seus olhos insones
secaram, não vêem brotar a relva que cresce livre
e verde, longe da tua cegueira. Seus ouvidos se
fecharam à qualquer musica, qualquer som, nem o
bem nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe
você pisa na terra mas não sente apenas pisa,
apenas vaga sobre o planeta, já nem ouve as
teclas do teu piano, você está tão mirrado que
nem o diabo te ambiciona, não tem alma você é
o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo.

O que é teu já tá guardado
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar.


Eu posso engolir você só pra cuspir depois,
minha forma é matéria que você não alcança
desde o leite do peito de minha mãe, até o sem
fim dos versos, versos, versos, que brota do
poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita
na palma da inspiração de Caymmi, se choro quando
choro e minha lágrima cai é pra regar o capim que
alimenta a visa, chorando eu refaço as nascentes
que você secou.
Se desejo o meu desejo faz subir marés de sal e
sortilégio, vivo de cara pra o vento na chuva e
quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de
Gandhi, cruzam o meu peito.
Sou como a haste fina que qualquer brisa verga
mas, nenhuma espada corta

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe comigo


imagem google

Bethânia é essa artista completíssima que provoca lampejos de reflexão na sondagem do humano mais barroco, entre nosso breu e nossa luz. Revela-nos, à maneira dos grandes e imortais, uma parte valiosa do subjetivismo do indomável inconsciente.

Com este trabalho que ela chama de Carta de Amor, contemplamos exatamente aquilo que é dito pelo que não é dito, pelo que escapa no "oco, do oco, do sem fim do mundo" do Outro.

E também naquilo que vem passado a ferro no processo de constituição do sujeito, marcas impressas, insígneas maternais, selos profundamente autênticos do seu Eu:
"minha forma é matéria que você não alcança
desde o leite do peito de minha mãe,
até o sem fim dos versos, versos, versos"

Refazendo caminhos, garimpando canções do passado, procedendo uma verdadeira arquelogia da palavra e do verso, Bethania garante à música brasileira uma permanente purificação nos cenários mais desfavorávies à história e a memória da cultura popular, "chorando eu refaço as nascentes que você secou", nessa mistura genuinamente brasileira, fruto do branco, do índio e do negro, de suas heranças e do nunca estar à sós, mesmo quando se pense exatamente o contrário:

"Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
comece nem termine, é nunca é sempre, é tempo"
(...)

"Não mexe comigo que eu não ando só"