quarta-feira, 4 de abril de 2012

Maria Bethânia

"Escrever é purificador (...)
A brincadeira de ‘Carta de Amor’ é para mim,
para me livrar de demônios, angústias"

Maria Bethânia







Este mês de abril Bethânia lançou o álbum "Oásis de Bethânia" o de número 50 e durante uma coletiva aos jornalista no Rio de Janeiro, conversou sobre o novo projeto que tem inspirações sertanejas e poéticas, como sempre e disse lucidamente aos presentes:

"Sertão é onde não tem nada. Não tem água, falta tudo, a vida é seca.
É o limite que Deus colocou. Para mim isso é uma fonte,
uma nascente muito pura, me bota do tamanho que sou"

capa do cd

Ainda não adquiri o meu mas andei lendo e ouvindo do poema-canção "Carta de Amor" que ao que consta, pela primeira vez nos 47 anos de carreira, se apresenta como de sua autoria pessoal. Isto é muito significativo e revela uma maturidade "divanesca" (diva + divã).  Nos próximos dias, também editarei esta postagem para mencioná-lo integralmente. Mas de antemão e para quem ainda não conheceu, posso mencionar que é memorial. 


Um passeio simbólico por tudo quanto ela andou fazendo durante todos esses anos em seu divino ofício, das crenças, das heranças indígenas, africanas, portuguesas: brasileiras! De quando conheceu o Menino Jesus com o mestre Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, das contemplações à mãe natureza, das imensidões do universo à pequenez grão, farelo do sentimento humano. Mantra, desabafo, sussurro, muxoxo, praguejo poético de constranger e arrebatar, eis o texto:


Carta de Amor  Maria Bethânia

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe não


Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos Tupis
sou Tupinambá, tenho Erês, caboclo boiadeiro
mãos de cura, Morubichabas, Cocares, Arco-íris
Zarabatanas, Curarês, Flechas e Altares.
A velocidade da luz no escuro da mata escura
o breu o silêncio a espera. Eu tenho Jesus,
Maria e José, todos os Pajés em minha companhia
o menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos
(o poeta me contou).

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe não


Não misturo , não me dobro a rainha do mar
anda de mãos dadas comigo, me ensina o baile
das ondas e canta, canta, canta pra mim, é do
ouro de Oxum que é feita a armadura guarda o
meu corpo, garante meu sangue, minha garganta
o veneno do mal não acha passagem e em meu
coração Maria ascende sua luz, e me aponta o caminho.
Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã,
giro o mundo, viro, reviro tô no recôncavo
tô em face, vôo entre as estrelas, brinco de
ser uma traço o cruzeiro do sul, com a tocha
da fogueira de João menino, rezo com as três
Marias, vou além me recolho no esplendor das
nebulosas descanso nos vales, montanhas, durmo
na forja de algum, mergulho no calor da lava
dos vulcões, corpo vivo de Xangô

Não ando no Breu nem ando na treva
Não ando no breu nem ando na treva
é por onde eu vou o Santo me leva
é por onde eu vou o Santo me leva


Medo não me alcança, no deserto me acho, faço
cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo
meus pés recebem bálsamos, unguento suave das
mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro,
no Oásis de Bethânia.
Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
comece nem termine, é nunca é sempre, é tempo
de reparar na balança de nobre cobre que o rei
equilibra, fulmina o injusto, deixa nua a justiça

Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão
e pra onde você for não leva o meu nome não
e pra onde você for não leva o meu nome não
 

Onde vai valente? você secou seus olhos insones
secaram, não vêem brotar a relva que cresce livre
e verde, longe da tua cegueira. Seus ouvidos se
fecharam à qualquer musica, qualquer som, nem o
bem nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe
você pisa na terra mas não sente apenas pisa,
apenas vaga sobre o planeta, já nem ouve as
teclas do teu piano, você está tão mirrado que
nem o diabo te ambiciona, não tem alma você é
o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo.

O que é teu já tá guardado
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar.


Eu posso engolir você só pra cuspir depois,
minha forma é matéria que você não alcança
desde o leite do peito de minha mãe, até o sem
fim dos versos, versos, versos, que brota do
poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita
na palma da inspiração de Caymmi, se choro quando
choro e minha lágrima cai é pra regar o capim que
alimenta a visa, chorando eu refaço as nascentes
que você secou.
Se desejo o meu desejo faz subir marés de sal e
sortilégio, vivo de cara pra o vento na chuva e
quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de
Gandhi, cruzam o meu peito.
Sou como a haste fina que qualquer brisa verga
mas, nenhuma espada corta

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe comigo


imagem google

Bethânia é essa artista completíssima que provoca lampejos de reflexão na sondagem do humano mais barroco, entre nosso breu e nossa luz. Revela-nos, à maneira dos grandes e imortais, uma parte valiosa do subjetivismo do indomável inconsciente.

Com este trabalho que ela chama de Carta de Amor, contemplamos exatamente aquilo que é dito pelo que não é dito, pelo que escapa no "oco, do oco, do sem fim do mundo" do Outro.

E também naquilo que vem passado a ferro no processo de constituição do sujeito, marcas impressas, insígneas maternais, selos profundamente autênticos do seu Eu:
"minha forma é matéria que você não alcança
desde o leite do peito de minha mãe,
até o sem fim dos versos, versos, versos"

Refazendo caminhos, garimpando canções do passado, procedendo uma verdadeira arquelogia da palavra e do verso, Bethania garante à música brasileira uma permanente purificação nos cenários mais desfavorávies à história e a memória da cultura popular, "chorando eu refaço as nascentes que você secou", nessa mistura genuinamente brasileira, fruto do branco, do índio e do negro, de suas heranças e do nunca estar à sós, mesmo quando se pense exatamente o contrário:

"Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
comece nem termine, é nunca é sempre, é tempo"
(...)

"Não mexe comigo que eu não ando só"
 




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