Faz um tempinho que desejo escrever sobre a esfinge Dercy. Resistência de
ainda não ter conseguido ler a publicação de Maria Adelaide Amaral, “Dercy de
cabo a rabo”. Apenas deliciosos trechos.
Depois, veio a minissérie global “Dercy de Verdade”,
inteiramente baseada na obra biográfica, inclusive sob a tutela da mesma Maria
Adelaide Amaral que é também uma boa autora de folhetins. Foi um deleite, perdi
alguns capítulos e aguardo a venda em DVD, pronto.
Indispensável dizer é que tivemos, os que assistiram, a oportunidade de
migrar o pensamento daquilo que já supunhamos saber sobre a artista Dercy,
principalmente a dos últimos anos de vida, que ainda com limitações, queria
não apenas ganhar salário gratuitamente sem trabalhar (para a empresa que ajudou a fundar).
Dercy, que nasceu Dolores, dores em espanhol, sempre teve muito a dizer
e sempre falou honestíssima, mesmo que por meio dos chistes e ‘palavrões’. Atos
de fala muito bem aproveitados pela psicanálise para a tradução do inconsciente.
Não só de ‘palavrões’ vivia Dercy e isto deve ser séria e respeitosamente
analisado. O que se pode mensurar é que dentro ou fora do set analítico, a
centenária Dercy Gonçalves, quase da idade da psicanálise, viveu tantos eventos
que se fossemos relacionar aqui levaríamos um texto inteiro, o que não é a
proposta. Também não me proponho beatificá-la, longe disto, Deus a livre. Fiquemos preferencialmente com a imagem de uma Dercy barroca, luz e
sombra, plural, tantas:
“Quem é Dercy Gonçalves, quem sou eu? Sei lá. Não
sei quem sou. Fui tanta coisa. Eu fui tudo [...] Até de vasto mundo me
chamaram. E também disseram de mim: ‘essa mulher é uma santa, ‘essa mulher é
uma ordinária’, ‘essa mulher é uma escrota’, ‘essa mulher é correta’, ‘essa
mulher é...’. Tanta coisa que até esqueci. Menos o último refrão: ‘essa mulher
é um exemplo de vida’.
Mas é exatamente
após sua morte, como o é na maioria dos que também morrem, que se tem tal
oportunidade analítica – mesmo que em devassada e devastadora busca de confidências, de
coisas que possam denunciar o que não se sabia, de endossos de virtudes, enfim,
de um tudo tão extremado. Sua alongada vida entre nós, sempre revelou coisas
(im)pertinentemente interessantes. É o caso de sempre se pensar quando é que
ela morreria. Dercy não morria e já se mitigavam suposições humorísticas.
Veio-lhe a morte e ainda assim, coletivamente, se dispersaram mais rumores da
chegada de Dercy no Céu, como frequentemente acontece nos textos dos cordéis.
Dercy foi uma
justa prova de que a idade avançada não significa ser velho. Disto, ela retrucou
uma vez dizendo:
Não sou velha. Velho é quem está caduco, velha são as
pessoas que não têm mais o que fazer, que ficam encostadas, incomodando. Mas
uma mulher como eu, que ainda trabalha, briga e raciocina...
Nada é gratuito ou
por acaso. Até mesmo o ‘palavrão’ conclama, e como clama uma representação. Mas
qual? Uma religação de afeto que neste ato dissolve a repressão infantil? Pode
ser tanta coisa, sem receita prévia, a posição do analisando, a posição do analista,
ambos diante da fala. Como é interessante notar que a linguagem, em seus mais
variados usos, inclusive nas ‘palavras de baixo calão’ encontramos uma via de
questionamento, a pulsação da pontuação que extraordinariamente escapa do
inconsciente. Em quantos de nós habita uma Dercy? Quantas são latentes, quantas
são manifestas?
Pior, quantos
mereceriam uma ação analítica para tantas interrogações mal vividas, as do
corpo e as da alma?
É o caso do
encontro de Dercy com a Psicanálise. Poucos sabiam antes da exibição
massificada da minissérie em 2012, que aquela personalidade havia feito análise
durante anos e o melhor, que trazia grande êxito daquela experiência. Ora, uma
coisa é saber que muitos do meio artístico fazem um discreto uso da
psicanálise, mas outra coisa é presenciar um relato público e lúcido deste
convívio. É o que fez Dercy ao ser entrevistada por Jô Soares muitos anos antes
de morrer e que selecionado o trecho, compartilho aqui no blog:
Dedicar
aproximadamente uma década de sua vida em análise, também não significa achar
que sejam muitos os problemas do sujeito. Significa mesmo que é muito bom
manter-se coerente no entendimento de seu movimento e de sua conduta, seja boa,
seja má, livre de preconceitos.
Cada caso é um
caso. Sobre Dercy Gonçalves é necessário investigar as causas, ela o fez certamente, e
aprendeu a conviver com suas angústias. De seus palavrões e dela não tenhamos
medo, repulsa, preconceito. Cada sujeito sempre estará sujeito...
Para saber mais:
Livro: Dercy de Cabo a Rabo
Categoria: Literatura Nacional / Biografias e Memórias
Número de Paginas : 320
Preço: De R$ 34,90 Por R$ 27,90
Saraiva.com.br
Para saber mais:
Livro: Dercy de Cabo a Rabo
Autor: Amaral, Maria Adelaide
Editora: Globo Editora Categoria: Literatura Nacional / Biografias e Memórias
Número de Paginas : 320
Preço: De R$ 34,90 Por R$ 27,90
Saraiva.com.br
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