sábado, 26 de maio de 2012

Dercy e a Psicanálise





Faz um tempinho que desejo escrever sobre a esfinge Dercy. Resistência de ainda não ter conseguido ler a publicação de Maria Adelaide Amaral, “Dercy de cabo a rabo”. Apenas deliciosos trechos.

Depois, veio a minissérie global “Dercy de Verdade”, inteiramente baseada na obra biográfica, inclusive sob a tutela da mesma Maria Adelaide Amaral que é também uma boa autora de folhetins. Foi um deleite, perdi alguns capítulos e aguardo a venda em DVD, pronto.








Indispensável dizer é que tivemos, os que assistiram, a oportunidade de migrar o pensamento daquilo que já supunhamos saber sobre a artista Dercy, principalmente a dos últimos anos de vida, que ainda com limitações, queria não apenas ganhar salário gratuitamente sem trabalhar (para a empresa que ajudou a fundar). 

Dercy, que nasceu Dolores, dores em espanhol, sempre teve muito a dizer e sempre falou honestíssima, mesmo que por meio dos chistes e ‘palavrões’. Atos de fala muito bem aproveitados pela psicanálise para a tradução do inconsciente. Não só de ‘palavrões’ vivia Dercy e isto deve ser séria e respeitosamente analisado. O que se pode mensurar é que dentro ou fora do set analítico, a centenária Dercy Gonçalves, quase da idade da psicanálise, viveu tantos eventos que se fossemos relacionar aqui levaríamos um texto inteiro, o que não é a proposta. Também não me proponho beatificá-la, longe disto, Deus a livre. Fiquemos preferencialmente com a imagem de uma Dercy barroca, luz e sombra, plural, tantas:

“Quem é Dercy Gonçalves, quem sou eu? Sei lá. Não sei quem sou. Fui tanta coisa. Eu fui tudo [...] Até de vasto mundo me chamaram. E também disseram de mim: ‘essa mulher é uma santa, ‘essa mulher é uma ordinária’, ‘essa mulher é uma escrota’, ‘essa mulher é correta’, ‘essa mulher é...’. Tanta coisa que até esqueci. Menos o último refrão: ‘essa mulher é um exemplo de vida’.

Mas é exatamente após sua morte, como o é na maioria dos que também morrem, que se tem tal oportunidade analítica – mesmo que em devassada e devastadora busca de confidências, de coisas que possam denunciar o que não se sabia, de endossos de virtudes, enfim, de um tudo tão extremado. Sua alongada vida entre nós, sempre revelou coisas (im)pertinentemente interessantes. É o caso de sempre se pensar quando é que ela morreria. Dercy não morria e já se mitigavam suposições humorísticas. Veio-lhe a morte e ainda assim, coletivamente, se dispersaram mais rumores da chegada de Dercy no Céu, como frequentemente acontece nos textos dos cordéis.









Dercy foi uma justa prova de que a idade avançada não significa ser velho. Disto, ela retrucou uma vez dizendo:

Não sou velha. Velho é quem está caduco, velha são as pessoas que não têm mais o que fazer, que ficam encostadas, incomodando. Mas uma mulher como eu, que ainda trabalha, briga e raciocina...


Nada é gratuito ou por acaso. Até mesmo o ‘palavrão’ conclama, e como clama uma representação. Mas qual? Uma religação de afeto que neste ato dissolve a repressão infantil? Pode ser tanta coisa, sem receita prévia, a posição do analisando, a posição do analista, ambos diante da fala. Como é interessante notar que a linguagem, em seus mais variados usos, inclusive nas ‘palavras de baixo calão’ encontramos uma via de questionamento, a pulsação da pontuação que extraordinariamente escapa do inconsciente. Em quantos de nós habita uma Dercy? Quantas são latentes, quantas são manifestas?


Pior, quantos mereceriam uma ação analítica para tantas interrogações mal vividas, as do corpo e as da alma?

É o caso do encontro de Dercy com a Psicanálise. Poucos sabiam antes da exibição massificada da minissérie em 2012, que aquela personalidade havia feito análise durante anos e o melhor, que trazia grande êxito daquela experiência. Ora, uma coisa é saber que muitos do meio artístico fazem um discreto uso da psicanálise, mas outra coisa é presenciar um relato público e lúcido deste convívio. É o que fez Dercy ao ser entrevistada por Jô Soares muitos anos antes de morrer e que selecionado o trecho, compartilho aqui no blog:




Dedicar aproximadamente uma década de sua vida em análise, também não significa achar que sejam muitos os problemas do sujeito. Significa mesmo que é muito bom manter-se coerente no entendimento de seu movimento e de sua conduta, seja boa, seja má, livre de preconceitos.

Cada caso é um caso. Sobre Dercy Gonçalves é necessário investigar as causas, ela o fez certamente, e aprendeu a conviver com suas angústias. De seus palavrões e dela não tenhamos medo, repulsa, preconceito. Cada sujeito sempre estará sujeito...






Para saber mais:

Livro: Dercy de Cabo a Rabo
Autor: Amaral, Maria Adelaide
Editora: Globo Editora 
Categoria: Literatura Nacional / Biografias e Memórias
Número de Paginas : 320
Preço: De R$ 34,90 Por R$ 27,90
Saraiva.com.br



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