sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Sobre amor, clamor e ponto de exclamação















Lendo uma entrevista com o genro de Lacan, interessei-me por compartilhar aqui uma das respostas dadas à entrevistadora quando a mesma o questionou acerca da incapacidade que algumas pessoas tem de amar.

Mas antes, atendendo ao tema sugerido para esta sexta-feira de agosto, parece-nos desafiador ou um tanto aborrecedor filosofar sobre o amor, sobre o clamor pelo amor. Se amar é compartilhar, afinal, é possivel amar sozinho? mais além, é todo mundo que sabe amar?

Em sua plataforma Freud acenou não só uma vez para o amor e sua humana importância. Nos disse sobre a fragilidade orgânica em razão da falta de amor e de como os que não amam adoecem. Foi ele inclusive, enquanto fundador da psicanálise, que nos assegurou a importância do tratamento psicanalítico na tentativa de libertar exatamente esse humano amor recalcado.

Bom, é no engendramento da clínica psicanalítica contemporânea que nós, discípulos ou não, assinalamos o amor como ingrediente indispensável ao processo terapêutico. Desde as máximas bíblicas e hoje intertextualmente quando precisamos clinicamente "amar ao próximo" para, sem preconceito, acolher e fazê-lo acolher-se também... até o mais suspeitoso ateísmo de quem só acredita no processo, vendo. 

É no contato e exatamente do aviso lacaniano do risco sempre presente deste contato - com a polêmica ou indevida troca de significantes - que a análise vai existir. O amor transferencial descrito por Freud será sempre o grande palco para o mais belo espetáculo terapêutico - A (re)descoberta do amor, seu entendimento e ressignificação. Afinal, também é possível ao mais ateu a experiência da epifania, da revelação.

Porém, antes da clínica, muitos acabam se tornando vítimas em potencial de uma convincente propaganda e que é enganosa. Tem gente que diz amar. Mas como é este amor sem cumplicidade, sem confissão de segredos, sem humildade?   
 
Nesta rotulada pós-modernidade, quantos não conseguem atravessar esta ponte em busca do seu amor no outro? Necessidade humana de se permitir. Paradoxalmente, porque ser amado é o mais difícil? Por que algumas pessoas apenas ensaiam o amor em vôos curtos, rasteiros? No set analítico tal sintoma transborda-se dos mais contidos aos histriônicos. No fim, os que aqui aportam desejam agonicamente o vôo. Na psicanálise, não haverá grotas tão profundas que não sejam iluminadas pelo facho da luz morna do desejo de saber. 

Ficamos em vigília pelos que amam e pelos que dizem que amam.

Grande abraço e muito amor

  
Por que alguns sabem amar e outros não?

Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers - se posso dizer - homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.








  
Jacques Alain Miller
Fragmento da entrevista realizada por Hanna Waar,
da Psychologies Magazine, Outubro 2008.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Revista Informativa de Saúde

Em tempo, estou passando para divulgar a publicação psicanalítica (minha e dos colegas Djailson Malheiro e Elizangela Santos) junto a revista informativa de saúde "Primeira Classe" edição nº 52 que está circulando na Região Metropolitana do Cariri e algumas cidades dos vizinhos Estados da Paraíba e do Pernambuco.

A presente edição traz, além de nossa mídia, o texto intitulado Terapia em Psicanálise que apresenta de maneira objetiva esta modalidade terapêutica. É, inclusive, a primeira publicação integralmente psicanalítica da Primeira Classe em seus dez anos de atividade, especialmente por nos últimos anos contarmos com a formalização e credenciamento dos profissionais em razão da presença da Sociedade Contemporânea de Psicanálise SCOPSI.

Orgulha-nos transmitir a missão da psicanálise e viabilizar através da clínica, o encontro do sujeito consigo mesmo, nesta condução e disponibilidade, pela paz e pelo bem.






































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quinta-feira, 26 de julho de 2012

O psicossomático e o psicanalítico




















Revendo algumas marcações teóricas que se debruçam sobre os fenômenos psicossomáticos, cuidei em elaborar a presente pontuação para refletirmos algumas questões entre os colegas do ofício psicanalítico e os leitores afins do nosso blog.

Desde 2009 tenho gradativamente aprofundado parte das minhas leituras destinadas ao tema e muito embora tenha sido ela, a psicossomática, gestada no seio da medicina, sou grato aos filósofos da psicanálise que contribuíram para o seu desprendimento do saber puramente biomédico.

A discussão pode inclusive e naturalmente partir da Mãe Filosofia ao resgatarmos, por exemplo, o pensamento cartesiano e aquilo que ele sustenta sobre o dualismo corpo e mente, em separado.

Mas será que ao falarmos em psicossomática, devemos atender a um chamado de mão dupla e fazermos uma leitura divorciada do seu aspecto físico e do psíquico? Antes de mais nada, de onde vem o entendimento da doença psicossomática?

Para a história dos fatos, o termo aparece pela primeira vez em 1818 quando o médico Johann Heinroth apresentava trabalhos sobre o fervor e influência das paixões em algumas importantes doenças como a tuberculose, a epilepsia, e até mesmo o câncer.

Bom, anos e anos se passaram e por aqui bem perto muitos entoam uma fala que diz que doença psicossomática é um problema de fundo emocional. Pausa dramática. Doença de fundo emocional? É um pensar disperso e sem comprometimento, além de arriscado atribuir apenas ao listado plano das emoções a tradução de um sintoma inscrito no corpo e cuja presença segue mais além, no oceano das representações psíquicas.

Quando Freud tratou dos casos de histeria – e que isto também seja lido com bastante respeito teórico – mesmo não abordando frontalmente o viés psicossomático, o pai da psicanálise permitiu uma perfeita articulação que será, décadas mais tarde, tra(du)zida por Jacques Lacan e não só por este, como veremos mais adiante.


MEDICALIZAÇÃO: Freud em 1930  já previa o exagerado
mercado/consumo de drogas medicamentosas que apenas 
vão sedando e bão resolvem o sofrimento do sujeito humano. 
Antes do pensamento lacaniano que é de fundo lingüístico, portanto, inerente aos fenômenos da linguagem humana, precisamos reafirmar a compreensão de que na histeria, a famigerada conversão histérica não deve ser entendida como um sintoma psicossomático pela simples razão de que lá, sua incidência se dá no traço da subjetividade, das representações, ou ainda como o próprio Lacan diria: em seus significantes. Já na acepção psicossomática, sua incidência ocorre na exatidão física do corpo, a parte concreta. A exemplo disto, podemos relembrar os casos de ontem e de hoje que envolvem cegueira repentina quando nada de orgânico acomete o olho e sim a representação que esse olho conclama, a do não “enxergar a realidade” por assim pontuar.


Assim, o sintoma somático se constitui, creditando, vertendo-se na existência de uma afecção fisiológica. Ora, se o SOMA representa o corpo, e na própria etimologia da palavra psicossomática podemos traduzir o elo inquebrável entre o psíquico (mente) e o somático (corpo), toda doença independentemente de sua etiologia, seria naturalmente recebida como uma doença psicossomática, sem cisões e sem esta categorização e rótulo específicos.


A prática clínica convida o analista a sempre rever
suas posições teóricas, interrogando-o, interpelando-o.
Natural em se tratando do universo da subjetividade 

Pensando nisso tudo e revisitando os teóricos da psicanálise que abordam os tais fenômenos psicossomáticos e dentre eles é indispensável convidar além de Jacques Lacan, Donald Winnicott. O primeiro, como já dissemos, buscará a partir da base freudiana a montagem de suas clínicas e, sobre psicossomática, trará poucas, porém imprescindíveis leituras a respeito de um necessário esclarecimento. Nas formações de psicanálise, por exemplo, pouco se ouve dizer da abordagem lacaniana para a psicossomática e sendo raras, precisam ser postas à mesa do debate.


Sobre isto, sobre psicossomática, Lacan irá cinco anos antes de morrer, conferir uma importante interpretação do fenômeno em sua comparação ao hieróglifo da escrita ideográfica egípcia. Em sendo assim, a somatização resultaria de um complexo processo de codificação do corpo, fruto de uma experiência malograda. Eis a marca, o registro, a fixação nos escritos de Freud.

Na cadeia interminável de significantes, Lacan demonstra de que maneira nosso condicionamento se sujeita ao corpo e àquilo que ele pedirá e negando, oferecerá em resposta.

Suscetivelmente desejantes nós permanecemos e no caso dos pacientes somatizantes, até que se engendre a possibilidade de dar um sentido, de providenciar uma linguagem para decodificar esse hieróglifo “perdido” ressignificando a cadeia de significantes, exercitando-a.

Uma contrapartida otimista vem pela contribuição do pediatra e grande teórico da psicanálise Donald Winnicott, que desde a clínica infantil observou a capacidade que eles tinham em transpor ao corpo, os conflitos vivenciados por esses bebês em um ambiente desfavorável à elaboração psíquica.

Winnicott nos sinaliza para a importância do transtorno como via esperançosa de que o corpo dispõe, apesar de tudo. Esta percepção será abraçada por muitos outros psicanalistas que em seus trabalhos clínicos ou teóricos lançarão mão do instigador argumento da “doença” que deixa de ser doença para assumir-se símbolo interpretável de uma (r)evolução natural e de seus mecanismos essenciais de resolução encontráveis no corpo, para o corpo.

Corpo embebido de experiência e afetos na percepção da psicanalista Joyce McDougall, onde a observação, também na clínica infantil, a fez salientar a importância de um ambiente favorável à vinculação.

Já o psicanalista e teórico Pierre Marty, um dos maiores estudiosos sobre o assunto na França, defende que há uma estruturação que difere a psicossomática das demais já preestabelecidas, como no caso da neurose, da psicose ou da perversão. Ele nos afirma que a tal doença psicossomática é uma defesa estratégica que determinados sujeitos encontram para dar vazão àquilo que Freud já alertava no estudo da pulsão sexual, ou seja, se por alguma razão nossa libido está impedida, é no corpo que ela encontrará a válvula de descarregamento. Os somatizantes, segundo Marty, se classificariam em uma outra categoria, diferente das já mencionadas acima.

Mas o pensamento não foge à idéia de unificação. Em suma, penso na via de realização de uma doença, como sendo todas elas inegavelmente psicossomáticas. Elas não passam despercebidas pelo trajeto da experiência humana, do contato, da (con)vivência ou da falta, que é a expressão mais idônea que nos acena o corpo e a mente, estas duas faces de uma mesma moeda de troca.     

O Gaulês moribundo (Século III a.C.)


A ciência moderna ainda não produziu
um medicamento tranquilizador tão eficaz
como o são umas poucas palavras boas

S. Freud


  


sábado, 26 de maio de 2012

Dercy e a Psicanálise





Faz um tempinho que desejo escrever sobre a esfinge Dercy. Resistência de ainda não ter conseguido ler a publicação de Maria Adelaide Amaral, “Dercy de cabo a rabo”. Apenas deliciosos trechos.

Depois, veio a minissérie global “Dercy de Verdade”, inteiramente baseada na obra biográfica, inclusive sob a tutela da mesma Maria Adelaide Amaral que é também uma boa autora de folhetins. Foi um deleite, perdi alguns capítulos e aguardo a venda em DVD, pronto.








Indispensável dizer é que tivemos, os que assistiram, a oportunidade de migrar o pensamento daquilo que já supunhamos saber sobre a artista Dercy, principalmente a dos últimos anos de vida, que ainda com limitações, queria não apenas ganhar salário gratuitamente sem trabalhar (para a empresa que ajudou a fundar). 

Dercy, que nasceu Dolores, dores em espanhol, sempre teve muito a dizer e sempre falou honestíssima, mesmo que por meio dos chistes e ‘palavrões’. Atos de fala muito bem aproveitados pela psicanálise para a tradução do inconsciente. Não só de ‘palavrões’ vivia Dercy e isto deve ser séria e respeitosamente analisado. O que se pode mensurar é que dentro ou fora do set analítico, a centenária Dercy Gonçalves, quase da idade da psicanálise, viveu tantos eventos que se fossemos relacionar aqui levaríamos um texto inteiro, o que não é a proposta. Também não me proponho beatificá-la, longe disto, Deus a livre. Fiquemos preferencialmente com a imagem de uma Dercy barroca, luz e sombra, plural, tantas:

“Quem é Dercy Gonçalves, quem sou eu? Sei lá. Não sei quem sou. Fui tanta coisa. Eu fui tudo [...] Até de vasto mundo me chamaram. E também disseram de mim: ‘essa mulher é uma santa, ‘essa mulher é uma ordinária’, ‘essa mulher é uma escrota’, ‘essa mulher é correta’, ‘essa mulher é...’. Tanta coisa que até esqueci. Menos o último refrão: ‘essa mulher é um exemplo de vida’.

Mas é exatamente após sua morte, como o é na maioria dos que também morrem, que se tem tal oportunidade analítica – mesmo que em devassada e devastadora busca de confidências, de coisas que possam denunciar o que não se sabia, de endossos de virtudes, enfim, de um tudo tão extremado. Sua alongada vida entre nós, sempre revelou coisas (im)pertinentemente interessantes. É o caso de sempre se pensar quando é que ela morreria. Dercy não morria e já se mitigavam suposições humorísticas. Veio-lhe a morte e ainda assim, coletivamente, se dispersaram mais rumores da chegada de Dercy no Céu, como frequentemente acontece nos textos dos cordéis.









Dercy foi uma justa prova de que a idade avançada não significa ser velho. Disto, ela retrucou uma vez dizendo:

Não sou velha. Velho é quem está caduco, velha são as pessoas que não têm mais o que fazer, que ficam encostadas, incomodando. Mas uma mulher como eu, que ainda trabalha, briga e raciocina...


Nada é gratuito ou por acaso. Até mesmo o ‘palavrão’ conclama, e como clama uma representação. Mas qual? Uma religação de afeto que neste ato dissolve a repressão infantil? Pode ser tanta coisa, sem receita prévia, a posição do analisando, a posição do analista, ambos diante da fala. Como é interessante notar que a linguagem, em seus mais variados usos, inclusive nas ‘palavras de baixo calão’ encontramos uma via de questionamento, a pulsação da pontuação que extraordinariamente escapa do inconsciente. Em quantos de nós habita uma Dercy? Quantas são latentes, quantas são manifestas?


Pior, quantos mereceriam uma ação analítica para tantas interrogações mal vividas, as do corpo e as da alma?

É o caso do encontro de Dercy com a Psicanálise. Poucos sabiam antes da exibição massificada da minissérie em 2012, que aquela personalidade havia feito análise durante anos e o melhor, que trazia grande êxito daquela experiência. Ora, uma coisa é saber que muitos do meio artístico fazem um discreto uso da psicanálise, mas outra coisa é presenciar um relato público e lúcido deste convívio. É o que fez Dercy ao ser entrevistada por Jô Soares muitos anos antes de morrer e que selecionado o trecho, compartilho aqui no blog:




Dedicar aproximadamente uma década de sua vida em análise, também não significa achar que sejam muitos os problemas do sujeito. Significa mesmo que é muito bom manter-se coerente no entendimento de seu movimento e de sua conduta, seja boa, seja má, livre de preconceitos.

Cada caso é um caso. Sobre Dercy Gonçalves é necessário investigar as causas, ela o fez certamente, e aprendeu a conviver com suas angústias. De seus palavrões e dela não tenhamos medo, repulsa, preconceito. Cada sujeito sempre estará sujeito...






Para saber mais:

Livro: Dercy de Cabo a Rabo
Autor: Amaral, Maria Adelaide
Editora: Globo Editora 
Categoria: Literatura Nacional / Biografias e Memórias
Número de Paginas : 320
Preço: De R$ 34,90 Por R$ 27,90
Saraiva.com.br



domingo, 13 de maio de 2012

[Especial] DIA DAS MÃES

A MÃE DO PAI

DA PSICANÁLISE



Eduque-o como quiser; de qualquer maneira há de educá-lo mal.
Sigmund Freud



            Freud e sua mãe Amalie Nathanson Freud.
Amalie Freud faleceu em setembro de 1930 aos 95 anos,
        poucos anos antes da morte de Freud em 1939.


 
Bem-aventurada dona Amalie que pariu o “Sig de ouro”, jeito maternal como ela tratava o menino Sigismund Schlomo Freud nascido em seis de maio de mil oitocentos e cinquenta e seis e que mais tarde se tornaria o imortal Sigmund Freud.
Não me proponho a escrever aqui sobre as consequências da relação maternal na casa dos Freud. Se houve excessos e se isso foi bom ou ruim, não é meu itinerário analítico, nem por considerar o que o próprio Freud vivenciou de sua análise pessoal. Mas quero sim, ressaltar que o ouro reluziu e cá estamos contemplando uma matéria nobre e que não perde o seu valor.
Correndo por fora, neste segundo domingo de maio, data consagrada às mães e que tem sua gênese lá na era primaveril da mitologia grega, me veio à cabeça um dos bordões dentre os tantos flutuantes nos diálogos psicanalíticos contemporâneos. Dizer sempre ou quase sempre que a culpa é da mãe parece ser algo tão óbvio e tão cômodo que dito assim, de relance, açoita a índole intelectual dos inocentes. Lembro-me até de propaganda de um Banco (que não citarei) em cuja cena, um suposto analisando procura o Dr. Sigmund e ao abrir-lhe a porta, o próprio, encarnado e de pé da soleira da porta diz secamente: “a culpa é da sua mãe”. Após risos de uma plateia imaginária de fundo (talvez os que concordavam), um narrador dizia da importância e da beleza das coisas serem assim, “diretas ao ponto”. Este texto evoca ainda assunto pra outra postagem sobre os desprazeres da vida veloz na geração fast food. Mas retomemos ao complexo de culpa instaurado nas representações maternas.

Que culpa é essa? Espécie de herança maldita que passa de mães para filhas que viram mães, que têm suas filhas e filhas e mães que ao longo dos ciclos se renova? De onde vem esta sentença, condenação sem chance de defesa.
A “brincadeira” advém de engessadas “leituras” do conteúdo freudiano, pós-freudiano e é preciso muita subjetividade para refazer o percurso. De início, é extremamente necessário desconstruir a ideia de negatividade em torno do que é maternal. Por pior que tenha sido a relação afetiva ou mesmo a falta da relação, a psicanálise aplicada pelo profissional de boa fé jamais dirá a um analisando que a raiz de seu sofrimento é fruto desse fruto. Muito pelo contrário, a psicanálise acolhe, por meio de interpretações e análises, cuidando de reatualizar as versões da história a fim de que se possa ressignificar o essencial dela, dissolvendo seus conteúdos fantasmáticos e oriundos de anos de sofrimento reprimido inconsciente. Muito, mas muito erroneamente se pensa e se afirma na mídia, na clínica, “ou numa casinha de sapê” que a psicanálise põe a culpa de tudo nas mamães do mundo, quando em verdade o que ocorre – e o que a psicanálise faz de melhor - é exatamente não julgar e muito menos não culpar ninguém de algo ou de outro alguém.

O problema é quando um pensamento negativo como este, invade a expectativa de uma mãe, dos pais, caucionando a ideia de falência da estrutura familiar. Propositalmente transcrevi uma frase de Freud no início desta meditação para que pensemos na subjetividade dos tantos detalhes que constituem a dádiva da criação de um filho e não na coisa toda, por inteiro, indigesta. É reconfortante refletir que por mais que se pense e que se faça o melhor, este dito melhor pode não ser ou não ter sido o essencial.

Hoje assistimos a tantos pais e mães que “pagam” suas ausências físicas com incontáveis presentes de uma lista igualmente interminável simplesmente porque não tem fim, não se comp(a)ra aquilo que tentam eles na boa intenção de substituir o amor/alimento tão necessário nos primeiros e decisivos anos desse mirabolante psiquismo em constante estruturação e em que se poderá analisar futuramente, os pontos de desequilíbrio no desenvolvimento que se sobressaem por exemplo, através de uma fixação ou regressão. Ora, e mesmo com amor, o mundo lá fora irá provar como, na maioria dos casos, é preciso se lançar na áspera teia da vida.

A construção de um sujeito é algo extremamente complexo e não depende única e exclusivamente da mãe. Daí uma valiosa contribuição de Lacan sobre a figura do Pai na psicanálise, levando ainda em grande conta os contextos específicos da presença de outros em redor da criança em formação, outro exemplo pertinente.

Ao final, é bem o que em outra citação Freud ilustrou:


“Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons”
 



Dedicando esta postagem à minha mãe,
não apenas pelo dia de hoje,
mas por todos os dias do doce mistério da vida.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

FILME: A pele que habito


no divã de Almodóvar















Consegui, enfim, assistir ao filme de Pedro Almodóvar. Havia optado por outro filme quando de sua estréia há alguns meses. Entre os que amaram e os que odiaram, me coloco na fala dos que amaram. O filme conserva perfeitamente a assinatura do seu mestre Almodóvar e traz consigo inúmeras referências psicanalíticas.

A metáfora da pele é o pano de fundo essencial aos debates sobre nossa sexualidade, a que vestimos, a que habitamos, ou que alguns sujeitos humanos são forçados a habitar. O filme aborda em sua trama com grande particularidade essa questão da constituição da identidade. Pode parecer uma grande fábula, mas a metamorfose ali encerra uma grande discussão psíquica. Oscilando entre o fetiche, a castração e a peversão propriamente dita, refletimos pasmados sobre as peles em que habitamos ou nos aprisionamos.

A seguir, transponho um texto analítico do psicanalista Calligaris sobre o filme. Boa leitura.


A pele que habito (e a dos outros)

Por Contardo Calligaris

Há homens que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas

Nesta altura, considero conhecida a trama do último Almodóvar, "A Pele que Habito": um cirurgião, o doutor Ledgard, sequestra um jovem (Vicente) durante anos e o transforma numa mulher (Vera).
Na saída do cinema, alguém comenta: "Se acontecesse comigo, eu ficaria namorando o médico. Fazer o quê? Pênis, eu já não teria mais. E não estaria a fim de fugir. Voltar para minha vida de antes e contar que me tornei mulher para minha mãe e para meus amigos, já pensou?".
Infelizmente, na situação da vítima de Ledgard, ninguém conseguiria fazer prova de tamanho pragmatismo, por uma razão simples: a sensação íntima e profunda de ser homem ou mulher (a identidade de gênero) não é coisa que possa ser mudada.
É possível, isso sim (e acontece no caso dos transexuais), "retificar" o corpo, caso ele não coincida com a identidade de gênero de alguém.
Se você sempre se sentiu homem num corpo de mulher ou mulher num corpo de homem, se você tem a trágica impressão de estar no corpo errado, pois bem, nesse caso, à força de hormônios, operações cirúrgicas e orientações terapêuticas, você talvez possa modificar seu corpo de maneira que ele concorde com seu sentimento de identidade.
Mas não há tratamentos que, ao transformar seu corpo, possam levar você a mudar seu sentimento profundo de ser homem ou mulher.
Conclusão, se um homem fosse transformado em mulher à força, ele não se resignaria (pragmaticamente), mas passaria a vida querendo que seu corpo fosse retificado para ele voltar a ser o homem que ele nunca deixou de ser.
Em 24 de fevereiro de 2000, nesta coluna ("A terapia da faca e do superbonder"), contei a história de David Reimer, cujo pênis foi decepado acidentalmente na circuncisão, em 1966.

Por sugestão do psicólogo John Money, Reimer foi castrado e criado como menina, com a ideia de que é melhor ser uma menina fabricada (na faca, com hormônios, roupas e brincadeiras adequadas) do que um menino com uma prótese peniana.
John Money escondeu o desespero de Reimer durante infância e adolescência. Reimer, ao descobrir o engodo do qual tinha sido vítima, parou a palhaçada e voltou a ser homem. Atualizando: em 2004, Reimer se suicidou.
Por qual loucura Money imaginou que, ao transformar o corpo de um menino, ele poderia mudar sua identidade e fazer dele uma mulher?
A resposta está na onipotência das ciências humanas nos anos 60, mas também numa fantasia erótica masculina, que talvez Money compartilhasse e que paira tanto sobre "A Pele que Habito" quanto sobre o livro (imperdível) que inspira o filme: "Tarântula", de Thierry Jonquet (Record).
Há sites (sixpacksite.com; tgcomics.com; fictionmania.tv) inteiramente dedicados a ficções e quadrinhos que elaboram fantasias de feminização forçada. A clientela desses sites é de homens heterossexuais, que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas. Dica: os machos que se gabam por levar as mulheres à loucura podem estar com vontade de sentir neles mesmos o efeito de seus próprios (supostos) talentos.
Mais perto do cotidiano, "A Pele que Habito" é também apenas mais uma parábola do amor, pois é banal que o amor nos leve a querer transformar parceiros e parceiras de forma que eles correspondam a nossas expectativas.
O projeto de moldar o outro transforma qualquer convívio numa violência. Mas essa violência não impede nada: no clássico "Post-traumatic Therapy and Victims of Violence" (terapia pós-traumática e vítimas da violência, Routledge, 1988), Frank Ochberg enumerava, entre os sintomas habituais das vítimas, tanto um ódio ressentido e doentio quanto sentimentos positivos -incluindo amor romântico, sujeição e, paradoxalmente, gratidão.
"A Pele que Habito" poderia ser, em suma, a versão trágica e realista de "My Fair Lady". No musical, Eliza Doolittle acaba amando mais que odiando o prof. Higgins, que a transformou numa "lady". No filme de Almodóvar, talvez Vera odeie Ledgard mais do que o ama. Mas o que importa é que os sentimentos da vítima são sempre ambivalentes.
É essa a chave para entender as mil histórias de vítimas que poderiam ou deveriam ter fugido, como a de Natascha Kampusch, abusada por "3096 Dias" (Verus ed.), ou como a da menina que foi escrava sexual de Gaddafi durante cinco anos (Folha.com de 15/11; http://migre.me/6g0HI).

Folha de S.Paulo - Ilustrada - A pele que habito (e a dos outros) - 01/12/2011

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Maria Bethânia

"Escrever é purificador (...)
A brincadeira de ‘Carta de Amor’ é para mim,
para me livrar de demônios, angústias"

Maria Bethânia







Este mês de abril Bethânia lançou o álbum "Oásis de Bethânia" o de número 50 e durante uma coletiva aos jornalista no Rio de Janeiro, conversou sobre o novo projeto que tem inspirações sertanejas e poéticas, como sempre e disse lucidamente aos presentes:

"Sertão é onde não tem nada. Não tem água, falta tudo, a vida é seca.
É o limite que Deus colocou. Para mim isso é uma fonte,
uma nascente muito pura, me bota do tamanho que sou"

capa do cd

Ainda não adquiri o meu mas andei lendo e ouvindo do poema-canção "Carta de Amor" que ao que consta, pela primeira vez nos 47 anos de carreira, se apresenta como de sua autoria pessoal. Isto é muito significativo e revela uma maturidade "divanesca" (diva + divã).  Nos próximos dias, também editarei esta postagem para mencioná-lo integralmente. Mas de antemão e para quem ainda não conheceu, posso mencionar que é memorial. 


Um passeio simbólico por tudo quanto ela andou fazendo durante todos esses anos em seu divino ofício, das crenças, das heranças indígenas, africanas, portuguesas: brasileiras! De quando conheceu o Menino Jesus com o mestre Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, das contemplações à mãe natureza, das imensidões do universo à pequenez grão, farelo do sentimento humano. Mantra, desabafo, sussurro, muxoxo, praguejo poético de constranger e arrebatar, eis o texto:


Carta de Amor  Maria Bethânia

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe não


Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos Tupis
sou Tupinambá, tenho Erês, caboclo boiadeiro
mãos de cura, Morubichabas, Cocares, Arco-íris
Zarabatanas, Curarês, Flechas e Altares.
A velocidade da luz no escuro da mata escura
o breu o silêncio a espera. Eu tenho Jesus,
Maria e José, todos os Pajés em minha companhia
o menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos
(o poeta me contou).

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe não


Não misturo , não me dobro a rainha do mar
anda de mãos dadas comigo, me ensina o baile
das ondas e canta, canta, canta pra mim, é do
ouro de Oxum que é feita a armadura guarda o
meu corpo, garante meu sangue, minha garganta
o veneno do mal não acha passagem e em meu
coração Maria ascende sua luz, e me aponta o caminho.
Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã,
giro o mundo, viro, reviro tô no recôncavo
tô em face, vôo entre as estrelas, brinco de
ser uma traço o cruzeiro do sul, com a tocha
da fogueira de João menino, rezo com as três
Marias, vou além me recolho no esplendor das
nebulosas descanso nos vales, montanhas, durmo
na forja de algum, mergulho no calor da lava
dos vulcões, corpo vivo de Xangô

Não ando no Breu nem ando na treva
Não ando no breu nem ando na treva
é por onde eu vou o Santo me leva
é por onde eu vou o Santo me leva


Medo não me alcança, no deserto me acho, faço
cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo
meus pés recebem bálsamos, unguento suave das
mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro,
no Oásis de Bethânia.
Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
comece nem termine, é nunca é sempre, é tempo
de reparar na balança de nobre cobre que o rei
equilibra, fulmina o injusto, deixa nua a justiça

Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão
e pra onde você for não leva o meu nome não
e pra onde você for não leva o meu nome não
 

Onde vai valente? você secou seus olhos insones
secaram, não vêem brotar a relva que cresce livre
e verde, longe da tua cegueira. Seus ouvidos se
fecharam à qualquer musica, qualquer som, nem o
bem nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe
você pisa na terra mas não sente apenas pisa,
apenas vaga sobre o planeta, já nem ouve as
teclas do teu piano, você está tão mirrado que
nem o diabo te ambiciona, não tem alma você é
o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo.

O que é teu já tá guardado
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar,
não sou eu que vou lhe dar.


Eu posso engolir você só pra cuspir depois,
minha forma é matéria que você não alcança
desde o leite do peito de minha mãe, até o sem
fim dos versos, versos, versos, que brota do
poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita
na palma da inspiração de Caymmi, se choro quando
choro e minha lágrima cai é pra regar o capim que
alimenta a visa, chorando eu refaço as nascentes
que você secou.
Se desejo o meu desejo faz subir marés de sal e
sortilégio, vivo de cara pra o vento na chuva e
quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de
Gandhi, cruzam o meu peito.
Sou como a haste fina que qualquer brisa verga
mas, nenhuma espada corta

Não mexe comigo que eu não ando só
eu não ando só, que eu não ando só
não mexe comigo


imagem google

Bethânia é essa artista completíssima que provoca lampejos de reflexão na sondagem do humano mais barroco, entre nosso breu e nossa luz. Revela-nos, à maneira dos grandes e imortais, uma parte valiosa do subjetivismo do indomável inconsciente.

Com este trabalho que ela chama de Carta de Amor, contemplamos exatamente aquilo que é dito pelo que não é dito, pelo que escapa no "oco, do oco, do sem fim do mundo" do Outro.

E também naquilo que vem passado a ferro no processo de constituição do sujeito, marcas impressas, insígneas maternais, selos profundamente autênticos do seu Eu:
"minha forma é matéria que você não alcança
desde o leite do peito de minha mãe,
até o sem fim dos versos, versos, versos"

Refazendo caminhos, garimpando canções do passado, procedendo uma verdadeira arquelogia da palavra e do verso, Bethania garante à música brasileira uma permanente purificação nos cenários mais desfavorávies à história e a memória da cultura popular, "chorando eu refaço as nascentes que você secou", nessa mistura genuinamente brasileira, fruto do branco, do índio e do negro, de suas heranças e do nunca estar à sós, mesmo quando se pense exatamente o contrário:

"Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
comece nem termine, é nunca é sempre, é tempo"
(...)

"Não mexe comigo que eu não ando só"